Raul Soares – Navio Prisão
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
O navio-prisão (1)
Uma das páginas negras da história santista
O nome Raul Soares não causa boas recordações entre os santistas, especialmente os que ainda recordam os episódios relativos ao regime militar instaurado no país em 1964. As histórias passadas a bordo do navio batizado com esse nome já se transformaram em pelo menos dois livros editados na Baixada Santista. Entre outras matérias na imprensa, destaca-se esta, publicada na edição número 2 do jornal Preto no Branco, da Cooperativa dos Jornalistas de Santos Ltda. (Jornacoop), em setembro de 1979:
“Arrancamos das entranhas do navio maldito as histórias proibidas dos sombrios cárceres, dos calabouços de tortura de presos políticos em 64” Reprodução da capa desse mensário publicado em setembro de 1979 Nau insensataTexto de Carlos Mauri Alexandrino Fotos do navio cedidas pelo Museu Naval de São Vicente Os velhos ferros rangiam com as oscilações noturnas das marés, estalavam com os leves balanços que o banco de areia onde fora encalhado o navio ainda permitia. Som monótono quebrado pelas tosses doentias dos que já escarravam sangue, que tossiam para fora os pulmões corroídos pela umidade e pelo frio. Era o único ruído que se permitia atravessar as portas trancadas e vencer os sombrios corredores. Já o fedor de mijo e de merda não esperava ordem para invadir tudo, fazendo arder o ar nas narinas e gargantas. Os que mesmo sem cobertas conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo cansaço, eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas adormecidas. Na maioria das celas, entretanto, enfrentar o colchão era menos desconfortável que ficar em pé, com água gelada pelo tornozelo. De repente, uma patrulha abria a porta e lançava para dentro a luz de uma lanterna elétrica, sempre secundada pelos canos ameaçadores das metralhadoras portáteis. Os homens da Polícia Marítima entravam levantando os prisioneiros e revistando tudo, como se fosse possível esconder alguma coisa. Os escritos eram apreendidos para ser anexados aos processos ou então para abertura de novos inquéritos: uma poesia podia significar mais algumas semanas no imundo navio-prisão. Às seis horas soava a sirena, a ordem para que todos se levantassem. Em pouco tempo era servido o café e um pedaço de pão. Eram colocados fora das celas que eram abertas o tempo suficiente para que o preso apanhasse a caneca, sob a mira das metralhadoras, para que não conversasse ou lançasse qualquer olhar sobre o vizinho de infortúnio. Às onze horas, era servido o almoço, no convés, para onde os presos eram encaminhados em fila indiana, sob mira das armas também.
Cada um pegava sua bandeja que era enchida com uma pasta de arroz e feijão-preto, na maioria das vezes, azeda e malcheirosa, que provocava diarréias incontroláveis e dores de estômago. Não havia talheres para todos e por isso eram obrigados a comer com as mãos. Alguns se recusavam a esse tratamento, exigindo o tratamento digno de um preso político: esses simplesmente não comiam mais, contentando-se com a banana ou a laranja servida como sobremesa. O jantar era uma sopa intragável feita com os restos do almoço, servida lá pelas 16,30 horas. As saídas das celas eram limitadas a uma ida diária ao banheiro e aos chamados arejamentos que não eram diários e, preferencialmente, nos dias chuvosos e frios, quando os presos eram colocados no convés para caminhar ou fazer exercícios forçados incompatíveis com suas condições físicas. Muitos presos, em cinqüenta dias de prisão, não chegaram a sair para arejamento dez vezes, meia hora em cada uma. Nada de conversa: era proibido. Não havia médico a bordo – a não ser alguns encarcerados que |
O navio, na época em que foi usado como prisão militar Foto publicada com a matéria O Raul Soares já era um velho de 64 anos ao chegar a Santos, em 24 de abril de 1964, para começar a receber os presos políticos seis dias depois. Havia sido um vigoroso transatlântico alemão antes de ser adquirido pelo Lloyd Brasileiro, em 1925. Serviu de prisão da rebelião comunista em 1935 e na revolta dos sargentos em Brasília. Sua última missão foi ainda de encarcerar brasileiros, fundeado em Santos. Os episódios que virão a seguir mostram, por si, o que foi o negro período: El Moroco – Os calabouços do navio eram três, batizados, ironicamente, com nomes de inferninhos famosos da época. El Moroco era um salão totalmente metálico, ao lado da caldeira, sem nenhuma ventilação, onde a temperatura passava dos 50 graus, sem nenhuma iluminação. Ainda assim era o melhor. O Night and Day era uma pequena sala onde o preso ficava com água gelada pelo joelho. O Casablanca era onde eram despejadas as fezes dos presos. Eram usados para quebrar a resistência – ou o que tachavam de impertinência – dos presos políticos. A maioria passou por essas salas. Foi onde Manoel de Almeida, ex-líder operário, contraiu a doença que o matou dois meses atrás. Waldemar Guerra, o que mais resistiu, ficou 16 dias num deles, sem comer.
Libertados-presos – O Juiz da 2ª Vara Criminal de Santos, Antônio Ferreira Granda, concedeu habeas-corpus para 16 presos que deixaram o navio por volta das 21 horas de um determinado dia. Foram colocados na sala do então capitão dos Portos, Júlio de Sá Bierrenbach, de quem ouviram a pergunta se alguém tinha queixas contra o tratamento recebido. Não houve nenhuma resposta, pois a vontade de ir para casa era muito grande. O capitão chamou a imprensa, mandou que os fotografassem e saíssem. Em seguida tornou para os presos: “Quero comunicar que vocês estão soltos e que agora, que estão em liberdade, estou dando nova voz de prisão, pois se saíram do processo da Aeronáutica, ainda não enfrentaram o da Marinha. Estou abrindo novo inquérito”. E deu ordem para que os soldados os conduzissem de volta ao navio. Muitos choraram de tristeza e ódio.
Operação resfriamento – Os presos do Exército, sob ordens do tenente-coronel Sebastião Alvim, eram submetidos a longos períodos de permanência dentro de uma geladeira. O nipônico Tomochi Sumida, absolutamente enfraquecido pelos maus tratos, era internado na geladeira todas as sextas-feiras: de duas em duas horas soldados armados de metralhadoras abriam a porta para que entrasse ar e voltavam a fechá-la. |
Grupo de prisioneiros no Raul Soares Foto publicada com a matéria Sem banheiro – A conversa entre os prisioneiros era proibida e nas poucas vezes em que foi possível a montagem de um sistema qualquer de comunicação, sua descoberta foi punida com a proibição dos arejamentos e das idas ao imundo banheiro coletivo, sendo obrigados os presos a fazer suas necessidades no chão da própria cela. Jornalistas sabujos – Certa vez foram levados a bordo dois jornalistas de Santos, com a missão de descreverem em A Gazeta as “ótimas condições carcerárias”. Ambos procuraram elogiar os militares durante a visita e no jornal do dia seguinte estava anotada a única queixa: faltavam facas para cortar os bifes. Ambos ainda estão na ativa. Propostas – O capitão Francisco Renato de Melo, da Aeronáutica, prendia sargentos e posteriormente fazia propostas desonestas às suas esposas. Assim aconteceu com o sargento Nilton Alencar, o suboficial Aving e muitos outros militares presos. |
A embarcação “maldita” Foto publicada com a matéria Roubar bananas – Os descuidados caiçaras que passavam com suas canoas perto do navio eram presos e submetidos a interrogatórios que nunca provaram coisa alguma contra ninguém. Enquanto eram interrogados, suas cargas, geralmente bananas ou peixes, eram subtraídas pelos soldados.
Desconfiança total – Quando a Marinha descobriu que os policiais marítimos haviam dado algumas facilidades aos prisioneiros por dinheiro e que haviam feito algumas fotos a bordo, os fuzileiros navais foram proibidos de conversar com os membros da outra força. Foram armadas metralhadoras potentes em pontos estratégicos: a Polícia Marítima vigiava os presos e a Marinha vigiava a Marítima.
Sem Lei – Os habeas corpus jamais foram respeitados e mesmo as ordens de soltura não eram atendidas. Todos os militares comentavam abertamente – e especialmente o tenente da Polícia Marítima, Ariovaldo Pereira dos Santos, o mais violento dos carcereiros -, que qualquer ordem de soltura seria contornada com a abertura de novo inquérito. Assim ocorreu com grande número de presos, entre eles Sérgio Martins, Argeu Anacleto da Silva, José Ribeiro, Neves Guerra, Nelson Frutuoso Amado. |
Capa do livro de Nelson Gatto Foto publicada com a matéria O jornalista foi calado“O depoimento que ora torno público, escrito em papel de embrulho num cárcere imundo de um dos sombrios navios-prisão em que brasileiros foram trancados, tratados como criminosos, é a explicação que dou aos meus amigos. Sem qualquer pretensão literária, é apenas um documento a retratar o Brasil numa época desgraçada.” Assim começa o livro Navio Presídio que poucos leram, ao contrário do que seu autor, o jornalista Nélson Gatto, pretendia. Escrito em 65, foi apreendido pelo Dops (N.E.: Delegacia de Ordem Política e Social) sem chegar às livrarias. A Justiça Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez – e desta por 10 a 0 – veio ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da Aeronáutica, Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica, apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar. Somente um exemplar escapou. Depois o coronel justificaria ao autor: “Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”. Gatto, que havia passado 43 dias no navio-presídio, voltou a ser preso em 67, para responder sobre o livro, conforme prometera o então capitão dos portos, Júlio de Sá Bierrembach. Em 1968, novamente preso: – Era véspera de 1º de maio – conta o jornalista – e corriam boatos de que haveria manifestações. Então fui encarcerado pelo II Exército. Durante o discurso, o governador Abreu Sodré foi apedrejado em praça pública e o Serviço Secreto da Aeronáutica me identificou como o líder do apedrejamento, o que A Gazeta noticiou em manchete. E eu na cadeia o tempo todo. Foi uma desmoralização geral. – Em 1970 fui acusado de ter articulado, ou participado, ou sei lá o que imaginaram, no seqüestro do cônsul japonês. Aí fui para a Operação Bandeirantes, na rua Tutóia (N.E.:Oban, órgão da repressão nessa rua da capital paulista), onde passei onze dias. O que aconteceu ali faz o episódio do Raul Soares parecer um passeio. Numa ocasião me deixaram horas na beira da represa Billings, totalmente nu e com uma pedra amarrada no pescoço. Depois me levaram para um matagal e mandaram que eu corresse. Fiquei parado como uma estátua apesar dos tiros que dispararam próximos a meu corpo, e isso, sem dúvida, me salvou a vida. – Queriam que eu confessasse que estava envolvido no seqïestro, o que era um absurdo total. Me colocaram dois dias numa pequena cela, totalmente escura, com um rato enorme e faminto. Se eu me sentava, o rato atacava e mordia. E – Fiquei 343 dias preso como suspeito e quando seqüestraram o cônsul suíço no Rio, fui incluído na lista. Enviaram-me para o Rio, mas me recusei a deixar o país. Aí, tentaram me usar para fazer propaganda e fizeram com que gravasse um depoimento para a televisão, de 40 minutos, nos quais não fiz um elogio sequer à revolução. O depoimento acabou saindo todo cortado, reduzido a oito minutos, porcamente montado. Queriam que eu condenasse o seqüestro e afirmasse que estava sendo bem tratado. O que falei foram das torturas, o que não servia a seus propósitos. – Foi tudo coisa de um promotor da Justiça Militar, Durval Aírton de Moura Araújo, que queria me pegar de qualquer maneira. Era tão desequilibrado que atualmente é procurador, de modo que não participe de mais nada. Ele chegou a me acusar de distribuir armas a manifestantes em Santo André, no dia da morte do Assis Chateaubriand (N.E.: fundador do grupo jornalístico Diários Associados). Acontece que durante a manifestação eu estava ao lado do Nelson Gatto era jornalista dos Diários Associados e, antes da revolução, foi transformado em chefe do Departamento de Repressão ao Contrabando em S.P., posição a que foi chamado pelo II Exército, pela experiência demonstrada nas grandes reportagens que fez denunciando gangs contrabandistas, “os bandidos de casaca”, como costuma dizer. Quando foi dado o golpe militar, conseguiu fugir disfarçado de padre, e se entregou posteriormente. Como jornalista, foi correspondente de guerra durante a invasão de Goa, na guerra do Congo, e na luta de libertação da Argélia, sobre os quais também escreveu livros. Hoje, anistiado, pretende voltar ao jornalismo, do qual foi afastado por ordem militar. O repórter escreverá novamente. |
O navio-prisão
(2)
Uma
das páginas negras da história santista
Além
das histórias contadas por Marcelo Gatto, outro livro santista enfoca
os acontecimentos do Raul Soares: escrito pela jornalista e professora
Lídia Maria de Melo, conta a história de um dos presos políticos
nesse navio: Iradil Santos Mello, seu pai. O jornal A Tribuna divulgou
assim o lançamento do livro Raul Soares – Um navio tatuado em
nós, em matéria publicada no dia 19 de novembro de 1995:
MEMÓRIA ‘Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós’ Fernanda Por Na volta, a Os sindicalistas, Iradil ficou O resultado O livro, um |
O navio, na época em que foi usado como prisão militar Foto publicada com a matériaIdéia vem desde a infânciaImpossível não ficar eternamente marcada depois de tantos acontecimentos. Impossível também não ter a vida totalmente alterada depois de tudo. E assim, Lídia, que sempre gostou de literatura, começou a escrever. Perigosamente, porque na época imperava a ditadura, e a mãe, prevendo os perigos, insistia para que a filha tivesse muito, mas muito cuidado. Isso foi em 1975, quando Lídia tinha 18 anos e fez a primeira tentativa de escrever sobre o assunto. O que saiu foi um conto no qual uma menina de seis anos observava o relacionamento de seus pais a partir de problemas políticos. Depois de pronta, ela mostrou sua obra a uma pessoa neutra, que não conhecia a história. O veredito? “O conto é irreal, porque é impossível que uma criança desta idade tenha esta compreensão da vida e possa ter estas impressões”. Só que Mas em 1985, Esta idéia Em uma conversa Diante do xeque-mate, Gravador em “Eu nunca procurei Há três |
Sindicalista Iradil Santos Mello Foto de Luigi Bongiovanni, publicada com a matéria Iradil, o sofrimento O Trabalhador Diretores de Indignado, |
A autora, Lídia Maria de Melo Foto de Irandy Ribas, publicada com a matéria Lídia, E Agora, ela O que a escritora E os planos? Quem é – Lídia Maria de Melo é santista e nasceu em 28 de setembro De 1976 a 1994 Lídia, Raul Soares, |
Capa do livro de Lídia Maria de Melo Reprodução publicada com a matéria Obra se divide em duas partesA escritora dividiu o livro em duas partes. A primeira vai de 1963 a 1985, e a segunda é o que foi extraído das entrevistas com seu pai. O começo, que é a história contada sob o ponto de vista de Lídia, é narrado em primeira pessoa, e ela mostra como era a vida da família antes do terror instituído pelo golpe militar. O pai tinha uma vida muito ativa, sendo candidato a vereador em Guarujá e um dos integrantes de uma das chapas que disputava a diretoria do Sindicato dos Operários dos Serviços Portuários de Santos, Guarujá, São Vicente e Cubatão. Na época, “Na escola, Entrevistas
Lídia Tudo isso é Do reencontro
SERVIÇO O navio-prisão Texto da jornalista Lídia Maria de Melo, publicado no jornal santista A Tribuna em 2 de novembro de 2003:
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